A espiral da morte do Setor Elétrico Brasileiro

No Brasil há dois ambientes de contratação de energia elétrica: o Ambiente de Contratação de Energia Regulado (ACR) e o Ambiente de Contratação de Livre (ACL). A partir de janeiro de 2024, os consumidores conectados às redes de alta e média tensão poderão optar entre o ACR e o ACL, enquanto os consumidores conectados às redes de baixa tensão são obrigados a comprar energia no ACR. 

Na prática, todas as residências, propriedades rurais, sistemas de iluminação pública e estabelecimentos comerciais pequenos estão conectados à rede de baixa tensão. Basta olhar a conta de luz da sua residência e verá que você é um consumidor do Grupo B, do subgrupo B1. Ou seja, você está no ACR!

No ACR, as distribuidoras compram energia principalmente por meio de Leilões definidos pelo Ministério de Minas e Energia (MME). Como os vencedores desses leilões são sempre os geradores ou comercializadores que ofertam energia ao menor preço, era esperado que a energia do Mercado Regulado fosse relativamente “barata”.

Conforme pode ser observado na Figura 1, o custo da energia no Mercado Regulado tem apresentado forte crescimento, justificado pelos inúmeros riscos que a contratação neste mercado está sujeita, tais como:

i. Risco cambial para a contratação da energia de Itaipu e da energia produzida pelas termoelétricas;

ii. Risco de variação dos preços dos combustíveis nos mercados internacionais, pois os custos de acionamento das termoelétricas são atualizados mensalmente;

iii. Risco de despacho, pois o custo varia em função do acionamento das usinas pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS);

iv. Risco hidrológico associado às usinas cotistas, à usina de Itaipu e às usinas que repactuaram o risco hidrológico; 

v. Risco inflacionário, pois os contratos são, na maioria, reajustados por IPCA, por períodos de até 30 anos.

Figura 1 – Custo da Energia no Ambiente de Contratação Regulado.

Ao longo dos últimos dez anos esses riscos se materializaram de forma insustentável, sendo necessária a ajuda externa por meio de recursos de contas setoriais (2013), empréstimos bancários e bandeiras tarifárias com valores excepcionais (2014 e 2021), ou revisões tarifárias extraordinárias de até 50% (2015).

Fugindo desses aumentos e dessas oscilações do valor da energia no ACR, e aproveitando os avanços tecnológicos que simplificaram e baratearam a geração de energia elétrica, os consumidores que podem têm migrado para o mercado livre, tal como apresentado na Figura 2. Observe que, atualmente, o ACL corresponde a um consumo de aproximadamente 25GWm, frente a um consumo total do Brasil de 69,7GWm.

Figura 2 – Migração dos Consumidores para o Ambiente de Contratação Livre.

Um dos incentivos para a migração dos consumidores ao ACL é o uso de fontes incentivadas de geração de energia, que dão descontos no pagamento pelo uso das redes. Conforme pode ser observado na Figura 3, os consumidores ligados às redes de distribuição que possuem este benefício representam um volume de energia de 8GWm. 

Figura 3 – Uso de Energia Incentivada no Ambiente de Contratação Livre.

Outra opção é se tornar autoprodutor, ou seja, o consumidor passa a produzir sua própria energia, garantindo o travamento dos seus custos, mas – por outro lado – se torna um gerador e assume os riscos inerentes ao segmento de geração, se submetendo à regulação e à fiscalização da ANEEL e às determinações das demais instituições do Setor Elétrico.

Neste nicho podem ser separados os autoprodutores convencionais, que possuem usinas ou são sócios diretos em sociedades de propósito específico (SPEs) constituídas por força de edital de leilão de concessão, para construir e operar usinas, e os autoprodutores, também por equiparação, mas que constituem arranjos societários com ações “superpreferenciais”.

Como os autoprodutores são geradores, sobre a parcela da energia que produzem para si mesmos não incidem encargos setoriais (CDE1, PROINFA2, ESS3 e EER4). Se suas usinas forem de fontes incentivadas, também usufruem dos descontos no uso da rede, pois o desconto é política setorial para os geradores dessas fontes.

Conforme pode ser observado na Figura 4, a Autoprodução soma atualmente cerca de 4GWm de consumo, com destaque para redução nos valores históricos de Autoprodução Convencional, e incremento rápido e recente da Autoprodução por Equiparação, com arranjo de ações “superpreferenciais”.

Figura 4 – Autoprodução de Energia.

Àqueles que produzem energia por meio da Micro e da Minigeração Distribuída (MMGD)5, incentivos são dados por meio do Sistema de Compensação de Energia Elétrica (SCEE), em que as tarifas são aplicadas no consumo líquido mensal das unidades, subtraindo-se da energia consumida, a energia gerada excedente injetada na rede.

Assim, os incentivos à MMGD se referem ao não pagamento de praticamente todas as componentes tarifárias, respeitando-se o faturamento mínimo mensal pela disponibilidade das redes de distribuição e, ainda, a partir de 2023, pagamentos crescentes da componente tarifária associada aos custos das distribuidoras, de acordo com a Lei no 14.300/2022, para as novas conexões de MMGD.

Conforme pode ser observado na Figura 5, o crescimento da MMGD tem sido muito rápido – praticamente exponencial – atingindo um volume de energia da ordem de 4GWm em um intervalo relativamente curto, de aproximadamente 5 anos. 

Figura 5 – Micro e Mini Geração Distribuída.

Finalmente, observa-se crescimento acelerado do consumo de energia associado à Tarifa Social de Energia Elétrica (TSEE), tal como apresentado na Figura 6. Em 2019, antes da pandemia, o consumo associado à TSEE era de aproximadamente 1,5GWm e, no início de 2023, já superava 3GWm. Esse crescimento está associado principalmente à Lei no 14.203/2021, que instituiu a concessão automática dos benefícios aos cadastrados nos programas sociais do governo federal.

Os incentivos da TSEE se dão na forma de descontos na tarifa de fornecimento de energia elétrica, bem como pelo não pagamento de encargos setoriais como a CDE e o PROINFA. 

Figura 6 – Consumo Associado à Tarifa Social de Energia Elétrica.

Ocorre que todos os incentivos ou benefícios apresentados acabam por determinar custos para os demais consumidores pagarem, por meio de encargos setoriais cobrados principalmente por meio da CDE. Por exemplo, o desconto no uso da rede que o consumidor que compra energia incentivada possui, é pago pela CDE; os descontos da Tarifa Social, também são pagos pela CDE e, assim, essa Conta apresenta valores anuais que superam R$35bilhões, com destaque aos subsídios para a geração termoelétrica na Região Amazônica (Conta de Consumo de Combustíveis – CCC), tal como apresentado na Figura 7.

Figura 7 – Conta de Desenvolvimento Energético.

Ainda há encargos relevantes que estão fora da CDE, tais como os Encargos de Serviços do Sistema (ESS), o Encargo de Energia de Reserva (EER), os encargos incorporados mais recentemente como Reserva de Capacidade (ERCAP) e as usinas contratadas de forma emergencial, por meio de Processo Competitivo Simplificado (PCS), em 2021. A expectativa é que esses encargos tenham crescimento relevante nos próximos anos, conforme as usinas entrarem em operação, tal como apresentado na Figura 8. 

Figura 8 – Outros Custos e Encargos Setoriais.

Assim, de forma geral, observam-se dois tipos de incentivos para os diferentes consumidores e geradores de energia elétrica:

1. A concessão de descontos nos valores da tarifa que, via de regra, são custeados por encargos setoriais (CDE); 

2. A não incidência e a isenção no pagamento de encargos setoriais, dentro e fora da CDE.

Esses incentivos acabam criando um ciclo em que as escolhas individuais dos consumidores determinam impactos sistêmicos relevantes, tal como pode ser observado na Figura 9:

• As tarifas carregadas de encargos e de ineficiências incentivam os consumidores a buscarem soluções para reduzirem seus próprios custos;

• Essas soluções determinam custos para os demais consumidores, na forma de encargos, e/ou reduzem a base de consumidores pagantes dos encargos existentes;

• As componentes tarifárias crescem rapidamente, incentivando que mais consumidores busquem soluções para reduzirem seus próprios custos, e assim o ciclo se repete.

Figura 9 – Escolhas Individuais Determinam Custos Sistêmicos.

Como resultado, apesar de o consumo de energia elétrica no Brasil apresentar tendência de crescimento, o consumo no Ambiente de Contratação Regulada é decrescente, tal como apresentado na Figura 10.

 

Figura 10 – Tendências do Consumo de Energia Elétrica.

Se nada for feito

O ciclo indicado na Figura 9 revela decisões que os consumidores estão tomando a partir de informações como as tarifas de energia, o preço da energia no mercado regulado, as ofertas para migração ao mercado livre, o custo de se tornar um autoprodutor ou mesmo o de aderir à micro e à minigeração distribuída. 
Com base nessas informações, a Volt Robotics desenvolveu o Consumer Choice – um modelo de Inteligência Artificial que simula o comportamento dos consumidores de energia elétrica frente às opções de se manter no ACR, migrar para o ACL, se tornar um Autoprodutor ou aderir à MMGD.
A aplicação do Consumer Choice foi então realizada em diferentes cenários de hidrologia (mais chuva, menos chuva etc.), diferentes formas das distribuidoras recontratarem energia dos contratos que vencem nos próximos anos, diferentes preços para a geração distribuída e para a autoprodução, diferentes ritmos de expansão da oferta de energia para o ACL, e assim sucessivamente, tal como ilustrado na Figura 11.

Figura 11 – Cenários Utilizados para Avaliar Incertezas.

Para cada combinação desses cenários, o Consumer Choice simula as decisões dos consumidores e calcula os impactos dessas decisões sobre os encargos setoriais, sobre os mercados e sobre as tarifas, resultando em uma avaliação dinâmica das escolhas dos consumidores e dos seus impactos sistêmicos, tal como apresentado na Figura 12. 

Figura 12 – Simulação dos Impactos Sistêmicos das Escolhas dos Consumidores.

Os principais resultados são apresentados na Tabela 1, destacando-se:
i. Tendência de redução no Mercado Cativo, mesmo considerando crescimento do Mercado Brasil;
ii. Forte tendência de crescimento da MMGD e da Autoprodução por equiparação, com arranjos de ações “superpreferenciais”;
iii. Crescimento da sobra estrutural de energia no Brasil, concentrada no Mercado Livre;
iv. Crescimento da CDE, nas componentes relacionadas às fontes incentivadas, à compensação das distribuidoras pela MMGD e na Tarifa Social;
v. Redução da CDE para o custeio de combustíveis fósseis;
vi. Forte crescimento no Encargo de Reserva de Capacidade e no Encargo de Transmissão;
vii. Crescimento muito impactante da tarifa de baixa tensão, resultante do aumento de encargos e do baixo volume de consumo para dividir os custos.

Tabela 1 – Tendências setoriais mantendo-se o modelo setorial atual (moeda de hoje, sem considerar inflação)

Nesse contexto, tornam-se urgentes medidas que tragam sustentabilidade ao Setor Elétrico Brasileiro, buscando-se identificar incentivos econômicos consistentes para que, a partir do quadro atual, crie-se um ciclo de prosperidade, em que os ganhos individuais perseguidos pelos agentes sejam promotores de benefícios sistêmicos. 

 
O objetivo é frear e reverter o ciclo apresentado na Figura 9, incentivando-se comportamentos promotores de ganhos reais de produtividade, acelerando-se o ciclo apresentado na Figura 13.

Figura 13 - Ciclo em que Escolhas Individuais Determinam Benefícios Sistêmicos.

Nos próximos artigos traremos propostas para promover este ciclo de benefícios sistêmicos recorrentes a partir das escolhas individuais.

Em resumo...

O Setor Elétrico Brasileiro criou regras aparentemente competitivas para a contratação de energia no Ambiente Regulado, mas que se mostraram ineficazes e insustentáveis. Fugindo as altas de preço no ACR, os consumidores buscaram soluções que, embora benéficas individualmente, promoveram sobrecustos relevantes. É necessário inverter esta lógica, com mudanças que direcionem a lógica de mercado para um ciclo virtuoso, em que as escolhas individuais promovam benefícios sistêmicos. 

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